novembro 25, 2014

Milagre é ponto de vista

A abordagem das pessoas para me perguntar sobre o Lucas tem acontecido com mais freqüência. Talvez eu esteja mais aberta a isso. Não tem esse lance da "lei da atração"? Pois é, ando mesmo numa fase de questionamentos internos. Ser questionada por outras pessoas, outros olhares, me tira da zona de conforto e vai além do que minha consciência tem coragem de confrontar.

E não vale ser qualquer questionamento. Sou exigente. Outro dia, estava no Ibirapuera com as crianças e um rapaz se aproximou, olhou o Lucas e começou a puxar assunto: "O que ele tem? Quando teve? ...". Muita gente usa experiências próprias pra criar alguma identificação. O rapaz começou a me contar que tinha um primo que teve paralisia infantil e uma outra prima que tinha atraso de atenção. Ops! Acho que o rapaz quis dizer déficit de atenção. Ri por dentro. Me despedi do rapaz e fui correndo, e empurrando o Lucas, atrás da Clarinha que já estava em outro brinquedo.

Na amarelinha, Clara observava uma menina que não tinha muita afinidade com a brincadeira e arriscava uns pulinhos. O pai da menina, que tinha um olho na filha e outro no Lucas, convidou a Clara pra se juntar à brincadeira. Não me lembro qual foi a abordagem desse pai com relação ao Lucas, acho que foi algo parecido com o rapaz de uns momentos antes, bem normal. O diálogo seguiu assim até ele me perguntar:

"- Você crê na recuperação dele?"

Diante dessa pergunta, e de alguns outros comentários proferidos durante o nosso diálogo, saquei que o cara era evangélico e entendi a que tipo de "recuperação" ele se referia.

"- Olha, sou muito realista. Não acredito em milagre. Tenho conhecimento pleno de sua deficiência, aceito e amo do jeito ele é. Acho que esperar do Lucas mais do que ele pode me dar só gera frustração pra mim e pra ele, que sente a cobrança e a aflição das expectativas e não consegue corresponder à altura."

O assunto Lucas acabou aí. As meninas continuaram na amarelinha e o foco do assunto se voltou pra brincadeira.

Na correria do dia-a-dia, algumas sutilezas do Lucas acabam passando despercebidas. Há cerca de um mês, decidimos pegar uma outra cachorra, outra pitbull. Durante toda a semana, o assunto em casa foi a visita ao canil no final de semana pra conhecer os cachorrinhos e quem sabe trazer um pra casa. No sábado dessa semana, dia em que havíamos combinado a visita, o Lucas acordou muito animado, pura excitação! O canil fica em Guararema, cerca de 40 minutos de São Paulo. Durante todo o trajeto ele foi assim, animadíssimo, mexendo as pernas, sorrindo, ofegante. Lucas costuma ser bem alegre, mas estava acima do normal. Chegando ao canil, haviam quatro filhotinhos. Umas fofuras! Colocamos os bebês no colo do Lucas, que continuava muito feliz. Os filhotes ainda precisavam ser vacinados e vermifugados, então, fomos embora sem levar nenhum deles. No caminho de volta, o Lucas foi chorando a viagem toda. Eu, preocupada que ele estivesse desconfortável na cadeirinha do carro, pulei pro banco de trás e comecei a massagear suas pernas tentando deixá-lo confortável. Sem sucesso. Meu marido teve um estalo e se lembrou da animação do Lucas na ida. A insatisfação do Lucas não era de um desconforto físico. Sua dor era interna, era decepção. Ele chorava porque estava voltando pra casa sem a cachorrinha que tanto falamos que íamos pegar durante a semana.

Não estou aqui para discutir fé, muito menos religião. Poupo-me de acreditar no milagre que "cura" (em nome de Jesus!) deficientes severos e os fazem levantar de suas cadeiras de rodas e sair andando e falando. Pra mim, o Lucas é um milagre. Cada instante da sua existência, suas manifestações sutis, sua força, sua alegria, sua serenidade diante do caos em que vivemos, isso sim é um milagre!